quinta-feira, outubro 07, 2004



DURA PRAXIS, SED PRAXIS! A Praxe Académica nasceu nas universidades medievais, na sua maioria fundadas ou tuteladas pelas ordens eclesiásticas. “Praxe” deriva do latim “praxis”, que por sua vez tem origem no termo grego para “acção”. No latim, esta “acção” passou a significar a forma habitual de agir, o “uso” ou o “costume”. Em Portugal, a Praxe surgiu na Universidade de Coimbra (instalada em Lisboa durante alguns anos), sob a designação de “Investidas” ou“Caçoadas”, no início do século XIV. Entre outros preceitos, as regras da Caçoada estipulavam que os caloiros não poderiam andar na rua depois do anoitecer. Os que violassem essas regras seriam punidos pelos alunos mais velhos que, entre outros castigos, rapavam o cabelo dos caloiros infractores e batiam-lhes nas unhas com colheres de pau. Ao que parece, terá sido o próprio Rei D. Dinis a instituir a Praxe, como forma de manter a ordem entre os estudantes e, principalmente, entre estes e as populações de Lisboa e Coimbra.

Estes castigos e rituais da Caçoada, que por vezes assumiam extrema violência, motivaram várias intervenções das autoridades. Por exemplo, em 1727 o rei D. João V proibiu completamente as Investidas e as Caçoadas. Na origem dessa decisão do governo de Sua Majestade Fidelíssima, esteve a morte brutal de um caloiro de Coimbra, no seguimento de uma Caçoada particularmente violenta. Mais tarde, porém, a Caçoada voltou a ser praticada, transformando-se em “Praxe académica” (1). Em Portugal, a “Praxe” era então um costume exclusivamente coimbrão, cuja difusão pelo resto do país se deu apenas quando a princesa do Mondego perdeu o monopólio do ensino universitário (2). Ou seja, só se tornou uma “tradição” generalizada há relativamente pouco tempo, se fizermos a necessária comparação com a história secular da Praxe coimbrã.


Evolução e fundamentos da Praxe

Note-se que o termo “Caçoada” remete para a reinação à custa dos novos alunos. Com efeito, “caçoar” significa gozar ou divertir-se à custa de outrém, nomeadamente através da humilhação física ou psicológica desse alguém. “Investida”, por seu turno, remete para os grupos de estudantes mais velhos que vagueavam pelas ruas de Coimbra à “caça” de caloiros, recorrendo mesmo à violência física. Estes grupos foram os antecessores das actuais “trupes”.

É curioso verificar que, com o passar dos séculos, as “Investidas” e as “Caçoadas” passaram a denominar-se “Praxe Académica”, ao mesmo tempo que se encontrou uma nova justificação para a sua existência. Estes costumes deixaram de ser encarados como uma diversão dos mais velhos às custas dos mais novos (embora continue a ser uma forma de os primeiros demonstrarem a sua “superioridade”, dentro da “ordem natural” das coisas), para passarem a ser justificados pela necessidade de integração dos mais novos.

Ou seja, por um lado, a alusão directa à violência e à reinação - através dos abusos infligidos aos mais novos -, foi substituída pela invocação da “praxis”, i.e., dos usos tradicionais, e a própria violência física foi abandonada. Por outro, a Praxe passou a ser justificada com a necessidade de integrar os novos alunos. Neste percurso adivinha-se uma necessidade cada vez maior, por parte dos defensores da Praxe, de a justificarem aos olhos da sociedade. Assim sendo, os actuais defensores da Praxe pretendem que esta seja respeitada por duas razões: por ser uma “tradição” e por, alegadamente, ser o melhor meio de integrar os novos alunos.

A “ideologia” praxística assenta numa ideia base: os mais velhos possuem mais “sabedoria” e por isso merecem o respeito e a obediência dos mais novos. Ao lado do saber “oficial”, ministrado pela Universidade, existe o saber mundano, aquele que advém da experiência de vida acumulada pelos mais velhos.

Por um lado, existe um conjunto de rituais de iniciação na comunidade académica (o “baptismo”, etc), que integram o aluno recém-chegado. Esses rituais não são muito diferentes, na sua essência, de outros ritos de iniciação praticados noutros contextos, um pouco por todo o mundo, e nas mais diversas sociedades e culturas.

Por outro lado, os mais velhos personificam um “saber” que exige respeito e obediência. Exigências estas que se manifestam na “justiça da Praxe”(2) exercida pelos alunos mais velhos. Nesse sentido, os rituais da “justiça da Praxe” assumem-se como a forma mais eficaz de os alunos mais velhos demonstrarem a sua superioridade em relação aos mais novos. “Superioridade” essa que muitos novos alunos preferem não contestar abertamente, com receio de sofrerem o tratamento reservado aos “anti-Praxe”, que são publicamente identificados como tal, e se encontram impedidos de participar na vida académica.


Uma confraria iniciática?

A estrutura praxística torna-se quase uma confraria iniciática, uma vez que os seus membros têm de cumprir determinados requisitos para dela fazerem parte - neste caso, a obrigatoriedade de serem estudantes universitários e de se sujeitarem aos ritos de iniciação -, encontrando-se divididos em diferentes graus, consoante a antiguidade dessa mesma pertença. Como nas confrarias iniciáticas (3), a antiguidade confere o “saber” (gnosis), que aumenta à medida que o aluno ascende nos diferentes graus previstos no Código de Praxe. Quanto mais elevado é o grau, maior é o “conhecimento” acumulado pelo indivíduo e a reverência que, pelo menos em teoria, poderá esperar da parte dos colegas.


A Praxe e a ordem estabelecida

Ao impôr o respeito pela hierarquia e pela autoridade dos mais velhos, a Praxe transmite aos novos alunos a ideia de obediência à ordem estabelecida. Entre outras coisas, a Praxe é uma forma de transmitir a ideologia dominante aos novos membros da Academia. Além disso, as canções que se cantam nas “praxes”, por exemplo, reflectem as crenças dominantes e, por vezes, os preconceitos da nossa sociedade; nessas canções, é frequente o elogio do homem “garanhão”, a condenação moral da mulher “libertina” e a troça dos homossexuais.

É curioso constatar que os períodos históricos de maior fervor praxístico foram também os de maior estabilidade política. Por outro lado, as épocas revolucionárias e de luta social fizeram esquecer os costumes praxísticos. Foi o que aconteceu durante as lutas liberais do século XIX, e na década que sucedeu à instauração da Primeira República. Mais recentemente, entre 1961 e 1980, a Praxe voltou a cair no esquecimento, devido às lutas estudantis e à Revolução.

Essas épocas conturbadas foram marcadas pelo triunfo do individualismo e das ideias demo-liberais, o que explica o esquecimento a que votaram a ideologia praxística, com os seus valores de obediência à autoridade e à ordem estabelecida. Aqueles que se submetem à Praxe – voluntariamente ou não -, abdicam de uma parte da sua individualidade em prol daquilo que consideram ser o bem comum; os valores do grupo, do “clã”, sobrepõem-se assim aos direitos individuais que a nossa sociedade sacralizou. O que ajuda a explicar a polémica que hoje existe em volta da Praxe, e o extremar de certas posições que tornam impossível um debate sereno sobre o assunto.


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(1)- A palavra “Praxe” foi usada pela primeira vez neste contexto em 1863, e desde logo acompanhada pelo adjectivo “selvático”. Ou seja, fazia-se referência aos costumes “selváticos” dos estudantes de Coimbra. Com o passar do tempo, contudo, abandonaram-se os termos medievais “Investidas” e “Caçoadas”, vulgarizando-se a denominação “Praxe Académica”, ou seja, “costumes académicos”.

(2)- “Justiça da Praxe” são as “Praxes” que os alunos mais velhos aplicam sobre os mais novos.

(3)- Na maioria das confrarias iniciáticas (e sociedades secretas), a ascensão deve-se não apenas à antiguidade, como também ao mérito dos iniciados. No caso concreto da estrutura praxística, como não existem “provas” para ascender aos diferentes graus (à excepção dos rituais de iniciação a que os “caloiros” se têm de submeter), podemos dizer que a ascensão se deve quase exclusivamente à antiguidade da pertença à comunidade académica. Digo “quase exclusivamente”, porque o dirigente máximo – o “Dux Veteranorum”, ou o “Papa” -, é geralmente eleito pelos seus pares, sem que a antiguidade seja tida em conta (à excepção do facto de ter de possuir obrigatoriamente mais matrículas que os anos do curso).

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